Celso Athayde foi criado para ser borracheiro. Negro e pobre, chegou a morar seis anos embaixo de um viaduto do Rio de Janeiro vendendo balinhas e comendo lixo quando era criança. Numa cidade cheia de portas fechadas, pouco se esperava de alguém educado em becos e vielas sem endereço postal. Mas Celso cresceu e hoje, além de empresário e um respeitado articulador nas comunidades, é um dos protagonistas de um movimento com um potencial gigantesco. No desgastado panorama político do Brasil está nascendo um partido para negros e moradores de favela: o Frente Favela Brasil.
Seus integrantes não buscam revanche, mas exigem participar do processo democrático além dos votos que os candidatos arrancam deles a cada quatro anos. O partido não recusa brancos do asfalto nas suas fileiras, mas quer os negros dos morros na liderança. “A gente não tem que votar para cobrar direitos, a gente tem que votar para ter poder. Queremos debater a política do Brasil sob o olhar de quem assina, não de quem pede ou apenas vota”, reivindica Celso.
O partido nasce disposto a mudar o roteiro num país onde Celso, quando veste terno, é frequentemente confundido com o motorista de um branco. Brasil, onde 54% da população se declara negra ou parda, é comandado apenas por brancos; o Ministério das Cidades calcula que há cerca de 14 milhões de pessoas morando em favelas, mas o poder vive em condomínios fechados com playground; as comunidades movimentam 68,6 bilhões de reais por ano, segundo o Instituto Data Favela, mas seus moradores mal têm acesso a serviços básicos. “Queremos conquistar a igualdade estando presentes, por fim, nas esferas de poder. Os negros já estão na política, só que no cantinho reservado para eles”, diz Celso em referência aos núcleos das legendas tradicionais destinadas aos negros, como o Tucanafro do PSDB.
O Frente Favela Brasil é parte do imaginário de muitos negros há anos, antes de ser oficialmente criado um ano atrás. O próprio Celso levava uma década ruminando a ideia. Mas foi o impeachment da presidenta Dilma Rousseff que levou a militância, finalmente, à ação. Naquela votação, em abril de 2016, o Brasil viu seus 513 representantes declararem seu voto inspirados em Deus, nos corretores de seguros, nas petroleiras, no agronegócio, na família, nas netas, nas sobrinhas, nos maridos, nos torturadores da ditadura… “Ninguém fez uma única defesa da favela e da população negra. Sempre fomos usados eleitoralmente, mas nunca ocupamos espaços de poder. Aqui as pessoas que não tem voz terão prioridade, estarão na linha de frente”, explica Patrícia Alencar, co-presidenta nacional do partido, educadora, candomblecista e moradora do morro do Papagaio, em Belo Horizonte. “Nós não pretendemos inverter a lógica e tirar os não negros do poder, mas, por que, se você tem 513 deputados, não pode ter uma bancada de 100 deputados negros, um número expressivo, para que nossas demandas sejam ouvidas e sejam votadas?”, provoca Celso.
Na sala espelhada de uma academia da Vila Kennedy, uma favela carioca a 45 quilômetros da praia de Ipanema, Celso procura novos militantes e lideranças, “as melhores de cada comunidade”. Na plateia, sentados em cadeiras plásticas, há 30 moradores da comunidade cansados de não se sentirem representados. Celso, vestido com um moletom amarelo da seleção, apela a um novo olhar para pensar o país, “não mais o daqueles que se acham carentes, que se acham impotentes, mas aqueles que são potentes”. Os participantes assentem.
Com seu bebê recém nascido no colo, Flávia Ribeiro, advogada de 31 anos, indaga sobre a representatividade da mulher negra no novo partido. “Eu quero escrever minha própria historia. A gente sabe que no Brasil estamos representados por pessoas que não vivem nossa realidade, não sabem das nossas necessidades”, conta ela depois de se tornar uma das lideranças do Rio. “Acho maravilhoso poder trabalhar pela mulher negra da favela, isso vai mudar a vida de muita gente, inclusive a minha”, suspira. “Eu me formei em 2010, passei na OAB com muito custo, mas trabalho como assistente de faturamento, nada a ver com minha profissão. Eu sei que o Brasil está em crise, mas acredito que minha condição de negra periférica tem muito a ver com eu não conseguir emprego na minha área. Gostaria de que todos nós pudéssemos competir de igual para igual”.
No Frente Favela Brasil, 50% dos quadros do partido serão ocupados por mulheres –os 27 diretórios estaduais contam com um presidente no papel, mas na prática a liderança é assumida por uma dupla de homem e mulher. Também aposta pelos jovens e metade dos seus candidatos terão entre 18 e 35 anos. Cabem todos os credos e ideologias, sempre que a raça e o território sejam representados na liderança. O co-presidente nacional, Wanderson Maia, de 28 anos, é cientista político, cristão, homossexual e criado nos subúrbios do Rio: o vice-presidente é um pastor evangélico da favela de Vila Clara, em São Paulo, e a vice-presidenta uma indígena do Pelourinho de Salvador. “Os negros e favelados estão na periferia dos processos políticos e não têm impacto na toma de decisões. É a classe branca e burocrática que legisla no nosso nome. É hora de romper essa barreira”, prevê Maia, o único da sua família a ter ensino superior.
Todos eles trabalham de graça –o partido é formado por voluntários– e quem for eleito, como deputado ou senador, estará obrigado a doar 50% do salário para um fundo dedicado a projetos sociais nas comunidades. “Entendemos que a atividade parlamentar deve ser voluntaria e não profissional”, esclarece Celso. A escolha do candidato presidencial ainda está em discussão, mas não será Celso. Embora tenha se tornado o agitador mais carismático e midiático do movimento, ele não forma parte do partido. Não quer. “Apenas sou um voluntário, uso minha credibilidade para mobilizar as favelas de todo o Brasil”, diz. Fundador, 20 anos atrás, da Central Única das Favelas, com presença em 27 estados e 17 países, Celso é hoje sócio de 21 empresas, de agências de viagens a distribuidoras, com atividades voltadas às comunidades. E ele não quer renunciar à sua conquista. “Vou ajudar o partido em tudo o que precisar, mas acredito que a atividade empresarial não deve ser misturada com a política, podem surgir conflitos de interesses”.
O Frente Favela Brasil aterrissará em Brasília nesta quarta-feira (30) para registrar a legenda no Tribunal Superior Eleitoral. A partir daí, o partido terá dois meses para coletar 487.000 assinaturas e viabilizar sua candidatura nas próximas e imprevisíveis eleições de 2018. Marina Silva, quando quis lançar sua sigla Rede Sustentabilidade para disputar a presidência em 2014, não conseguiu. Celso e seus colegas aspiram a apresentar mais de cinco milhões de assinaturas. “A favela é uma grande potência”, adverte a presidenta nacional.
Num Brasil polarizado, os curiosos, simpatizantes e também detratores procuram saber se a sigla é de esquerda ou de direita. Mas suas lideranças recusam etiquetas que, no final de contas, tampouco as representam. “Se você me obrigar a me posicionar, prefiro dizer que sou de esquerda”, esclarece Celso. “Mas entre esquerda e direita, eu sou preto”, afirma ele, relembrando a célebre frase da filósofa Sueli Carneiro.
/Com informações do El País.
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