O documentário “Whitney”, lançado no festival de Cannes em maio e em cartaz nos cinemas americanos, conta, na maior parte do tempo, a já conhecida história de ascensão e queda da talentosa cantora Whitney Houston. Até que, nos 30 minutos finais, traz revelações fortes que tornam o filme não apenas arrebatador e triste, mas também importante.
Houston foi uma das artistas com o maior número de álbuns vendidos no século 20, mas seu vício em drogas acabou fazendo de seus últimos anos de vida mais um assunto de tabloides do que musical – até que, em 2012, ela morreu afogada em uma banheira de hotel aos 48 anos de idade.
O diretor Kevin Macdonald, conhecido tanto por seus documentários (como “Touching the Void” e “Marley”) quanto por filmes (“O Último Rei da Escócia” e “Intrigas de Estado”), questiona em “Whitney” por que a cantora jamais foi capaz de se desvencilhar de seus vícios. E como alguém que parecia tão radiante, feliz e vivaz nos palcos poderia ser, na verdade, tão torturada emocionalmente.
Entrevistando grande parte das pessoas próximas à estrela, incluindo seu ex-marido Bobby Brown, Macdonald mostra que a cantora foi abençoada e amaldiçoada desde o dia em que nasceu. Parentes não conseguiam acreditar em quão linda ela era quando bebê, e suas acrobacias vocais logo se tornaram conhecidas na sua cidade natal Newark, em Nova Jersey.
Mas seu elo com a música gospel foi abalado quando sua mãe e instrutora vocal Cissy Houston teve um caso com o pastor da igreja, levando ao divórcio de seus pais.
Ela experimentou cocaína pela primeira vez aos 16 anos, quando já trabalhava como backing vocal nos shows de sua mãe – que também havia cantado como backing vocal para ídolos como Elvis Presley e Aretha Franklin. Mas quando Whitney se tornou uma superestrela, com pouco mais de 20 anos, não foi só por causa de seu timbre prodigioso e sua aparência de modelo.
Cenas particulares
Em público, a cantora personificava a “queridinha da América”, de origem em uma boa família cristã. Mas, nos bastidores, vídeos caseiros mostram como suas piadas espirituosas acabavam virando conversas sob efeito de drogas.
Esse contexto é pouco surpreendente para quem acompanhou a vida de Houston e acompanha uma pequena tendência recente de documentários póstumos sobre cantoras extraordinariamente talentosas e trágicas – “Janis: Little Girl Blue”, sobre Janis Joplin, e “Amy”, sobre Amy Winehouse. A própria Houston foi tema de um documentário no ano passado, “Whitney: Can I Be Me”, do diretor Nick Broomfield.
Em busca das causas por trás das desgraças na vida de Houston, Macdonald começa encontrando indícios parecidos aos identificados por Broomfield: a “dupla consciência” de ser uma menina afro-americana do gueto que tenta conquistar a América branca ou a bissexualidade que ela negava em público.
Além disso, ela também passou por circunstâncias similares às que assombraram Amy Winehouse: um casamento infeliz com um homem difícil (Brown ficou enciumado quando a carreira da mulher eclipsou a sua, assim que o filme “O Guarda-Costas” foi lançado, em 1992); um pai que exacerbou seu papel de gerenciador da carreira da filha (John Houston processou Whitney pedindo US$ 100 milhões ao final da vida dela).
No filme, Macdonald toma decisões editoriais pretensiosas: intercala aparições televisivas de Houston com o noticiário de eventos globais insinuando que os dois estão de algum modo ligados – como se a primeira Guerra do Golfo, por exemplo, estivesse conectada aos conflitos pessoais da cantora.
Mas eis que o documentário chega a seu auge. Macdonald encontra uma possível chave para explicar os sofrimentos de Houston quando o filme passa dos 90 minutos – e quando se torna eletrizante.
À essa altura, o espectador já sabia que Houston e seus irmãos eram hospedados por diversos parentes enquanto sua mãe saía em turnê. O que entrevistados de Macdonald alegam é que a jovem Houston foi sexualmente abusada por uma dessas parentes, a cantora Dee Dee Warwick (morta em 2008), que era sua prima e também irmã de Dionne Warwick. Houston nunca comentou esse abuso publicamente.
Se isso não fosse assustador o bastante, a narrativa revela também um ciclo de abuso infantil. Não há nenhum indicativo de que Bobbi Kristina Brown, filha de Houston e Brown, tenha sido abusada sexualmente, mas o termo “abuso infantil” soa apropriado quando filme relembra que a menina ficava em uma mansão reclusa, enquanto seus pais consumiam drogas e ele pintava imagens de diabos e “olhos de demoníacos” com tinta spray nas paredes.
Bobbi morreu em 2015 – apenas três anos depois da mãe -, depois de ser encontrada inconsciente em sua banheira e passar seis meses em coma. Ao jogar luz sobre essa tragédia intergeneracional, o filme de Macdonald ajudará outras crianças em sofrimento, até mesmo dentro dos lares dos ricos e extremamente famosos. Com informações da BBC.
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